Tuesday, March 23, 2010

Um tanto de ficção, um tanto de verdade, um tanto de metáfora.


Sem título

Ela se olhava no espelho. Eram vinte e cinco anos que estavam na frente dela. Sentia aquela cheiro de maquiagem chegando ao seu nariz enquanto deixava suas maçãs vermelhas. Não precisava de nada daquilo, se Marina não usasse nenhuma maquiagem já seria admirada por todos. Mas entraria em cena hoje e quando cantamos devemos estar com uma presença forte.
Era uma noite qualquer para a cidade carioca, mais um dia de purgatório da beleza e do caos. A rua estaria calma se não fosse pelo movimento do bar no qual Marina se apresentaria. Se não fosse o tac-tac que os passos nervosos de um homem causavam naquele chão.
Ah, era mais um dia de cantoria! As pessoas adoravam a voz de Marina e parecia que a sua voz ficava cada vez mais impressionante só porque era elogiada. Seu microfone de estimação estava no lugar, na altura certa, sua voz estava aquecida. Começaria com o violão tocando sozinho e depois cantaria sua música favorita - não sabia ao certo o motivo mas queria começar bem aquela noite.
Quando o violão berimbou a última nota de Powell, se ouviu da multidão uma voz um tanto desafinada que ousava se fazer ouvida. Muito bem ouvida. E, por uma pessoa, ela foi reconhecida. A voz começava uma música chamada Beatriz. Do seu jeito desafinado ele convidou a estática Marina a continuar o que ele jamais faria belo.
Ela tinha os olhos azuis, talvez verdes, parados. A boca trêmula. As mãos com uma vontade de tocar aquele corpo e ao mesmo tempo fugir daquele toque.
Ela continuou a música. Cantou com a voz bêbada por algo que não sabia explicar, nem ela, nem ninguém conseguiria entender.
"Se ela dança no sétimo céu. Se ela acredita que é outro país. E se ela só decora o seu papel. E se eu pudesse entrar na sua vida?"
Sabia exatamente quais eram os versos que saiam da boca dela e quais saiam da boca dele. O olhar dele não balançava. Olhava fixo, sabia que teria que aproveitar agora a oportunidade que perdeu anos atrás de falar com Marina o quanto a amava.
"Sim, me leva para sempre, Beatriz. Me ensina a não andar com os pés no chão, para sempre é sempre por um triz"
Sua voz desafinada tomou o lugar da de Marina. As luzes baixas do bar davam a impressão de que naquele momento só havia os dois ali. Os copos, pratos, garfos e facas começaram então a ganhar vida e dançar para os dois.
"Ai, diz quantos desastres têm na minha mão, diz se é perigos a gente ser feliz."
Estavam distantes, nenhum dos dois se aproximava. Nenhum dos dois conseguia dar aquele passo. Talvez por não sentir a perna, talvez por sentir muita coisa.
"Se ela um dia despencar do céu? E se os pagantes exigirem bis? E se um arcanjo passar o chapéu?"
Ele sabia que um dos arcanjos que cruzou a vida de Marina já havia lhe mostrado como um guardião pode fazer tão mal. Ele não queria fazer isso. Ele queria provar a ela que era diferente, que dessa vez ele estava ali do lado dela para dar tudo que ainda não havia admitido.
"Se eu pudesse entrar na sua vida?"
Foi assim que a música se terminou. Aquela voz desafinada, parecia tão errada de ser escutada, tão perigoso de ser escutada. Será que vale a pena? Marina não se mexia. Só seu vestido. Seu vestido ía para frente e para trás. Ela sentiu ele tocando sua perna e imaginou que poderia ser a mão dele em vez de um vestido. Isso disparou seu coração, só de imaginar o toque dele já ficava nervosa.
Foi ouvido um sussurro. Os talheres e copos estavam congelados, esperando o que acontecia. O sussurro dizia a Marina "você é aquela que faz os outros felizes". Ele se aproximava enquanto pensava no que mais dizer. Havia ensaiado tanto mas estava incomodado por algo que o fazia esquecer as palavras. Sentia o batimento de seu coração em todas as partes do corpo. Sentiu o cheiro da brisa do mar, relaxou. Sabia que mais palavras só confundiriam a boca que falava. Deixou tudo para os olhos. Estendeu a mão e ficou esperando a de Marina.
Mas a dela não se mexia. Será que havia feito algo errado? Escapou de seus lábios "confia em mim, menina. Estou aqui para te levar para conhecermos a vida. Para te levar para sempre."
Como poderia ela saber o que fazer? É injusto a vida dar decisões tão importantes a nós mesmos, por que não pode haver alguém para se preocupar tão somente com nossos caminhos? Nada fazia sentido. Marina pensou em seu passado, relembrou o cheiro dele. Como era bom. Desceu do palco sem lhe dar a mão. Cambaleou em seus saltos, nunca havia achado estar tão preparada assim para ser aquela mulher que o show lhe pedia, que a vida lhe pedia. Chegou bem junto do corpo dele a ponto de conseguir sentir o leve encostar de seus corpos. Ele não se mexia, seu braço ainda estava estagnado como há momentos atrás. Ela deixou seu nariz a guiar ao pescoço dele. Sentiu aquele cheiro. Como era bom. Seus lábios foram até bem perto da orelha dele.
- Você nunca vai me enganar?
- Só quando fingir que estou com raiva de você.
As bocas se aproximavam, já haviam feito aquilo uma vez. Pareciam guiadas por si, pareciam aflitas por aquilo, esperavam essa oportunidade há muito tempo.
Há quem pensou que foi tudo uma grande encenação de Marina, "a cantora é também atriz!" Mas desde então ele nunca deixou de estar no palco com ela. Algumas vezes, tocava um instrumento; em outras, ajustava o equipamento. Quando achavam que ela estava sozinha, ela pensava "bobos, não sabem quem está na coxia."