Wednesday, November 23, 2011

Estantes de Madeira

Fico olhando para o meu quarto, conversando com essas paredes, quando finalmente estou cansado o suficiente de cansar elas, não posso deixar de perceber as estantes aqui penduradas, tão melancólicas as estantes de madeira. Possuem tantos artefatos, tantas peças, foram essas as peças que moldaram tudo. Agora, ficam aí, paradas, sem ninguém brincando com elas, quem conseguiria?
As paredes expostas, os tijolos à mostra. Parecem tão fixos, tão seguros, mas logo que um aroma me embriaga, vejo que quem estava fixo era o meu olhar. As paredes, bem empilhadas, são docemente frágeis, convidativas a serem repuxadas, remendadas, redesenhadas e até derrubadas. Parecem aguardar outro tijolo, ansiosas para saber se desequilibrarão ou se sustentarão. Mas o aroma não vinha delas.
O aroma percorria aquele quarto e parecia algo como uma aurora boreal, não tinha como explicar. Era tênue, distante, aconchegante, asfixiante aquecedor. De repente, reparei que o cheiro vinha de uma gaveta do armário.
Nossa, quantas roupas! As fantasias se misturavam com figurinos, os casacos estavam cercados pelas bermudas, as cuecas perdiam a luta para as meias, que as sufocavam. Em alguns cantos ainda havia um óculos ou um macacão ou uma gravata, essas coisas todas que o espelho já disse que existiu. E, naquela única gaveta, estava a fonte dos cheiros.
Revelava-se uma pequena boneca de pano, dessas que a cabeça é feita de porcelana e o rosto é pintado - com o necessário cuidado para querela se torne amável em vez de assustadora.
Cada vez que se apertava, quer fosse eu, quer fosse o vento, ela deixava escapar de si uma cor, uma tonalidade de fragrância tão bela e, às vezes, tão delicada, que se me descuidasse, tudo me fugia e de inebriado, passava a me sentir ébrio e tonto. Tonto pela vontade de ser aturdido outra vez.
E, como se bailasse, me vi diante da cabeceira. Se não tivesse aprendido o mínimo de lógica possível, diria que parecia maior que o quarto. Havia uns porta-retratos sobre aquela peça rústica; neles, fotos facilmente reconhecíveis e três possuíam destaque dentre todos, estavam no centro e, pelo tamanho, pareciam levitar. Ágape.
Sabe, acontece que funciona assim, primeiro vemos as fotos, as fotos trazem seus vídeos. As pessoas importantes ficam guardadas em nossos quartos, sou do tempo que ainda se guardavam as pessoas em VCR, e o interessante é que algumas ficaram guardadas tanto em VCR como em DVD. Claro que há aquelas muitas que juntas com outros tantos cabem em um CD ou, no máximo, em um pen drive.
Dentro daquela cômoda estavam caixas e mais caixas, albúns e mais albúns, todos recheados de tantas imagens e cada imagem recheada de tanta coisa. Se o tempo parasse não daria tempo suficiente de ver tudo como devia ser visto, ouvir tudo como devia ser ouvido, falar tudo como devia ser falado, porque é assim que deve ser. O tempo todo não dá tempo nenhum.
Revirei aquelas caixas e encontrei mais coisas do que poderia pensar que ainda encontraria, quando já cansado de tanto beber vinhos, licores, sucos, cachaças e águas, fui recostando meu dorso de leve na macia cama do meu lado.
Já de olhos fechados, ouvi engrenagens se mexendo e os ponteiros mexendo comigo. Davam incômodas cutucadas. Tentava ignorar, mas é difícil depois que você se angustia. Sabia como me confortar, mas não queria, não deveria, ou deveria?
Abri meu olhos, voltei a cômoda, sem sair da cama abri as suas gavetas, procurei pelos cantos, pelas frestas. Sabia. Voltei-me para os poucos retratos sobre o móvel.
Lá estava aquele porta-retrato. Deitado para baixo. Ficou assim por tanto tempo que se acostumou. Levantei-o e fui tragado, era uma maré e eu um pobre barco. Esparramado por aquele mar, naquele mar me sinto tranquilo, como se o mundo fosse dar certo. Descrevia cada onda que me acertava, não por conhecer todas ou serem todas iguais, mas por não me cansar de assistir desde o momento que elas começavam a surgir até a arrebentação.
Algumas vezes, deixava de assistir por motivo que não sei explicar, noutras perdurava noites pelas coxias, ouvindo aquela peça sem poder ver e torcendo para que cada movimento desse certo.
Ganhava força para continuar. Sabia que acordaria mais feliz - não haveria palavra na língua portuguesa para descrever melhor.
Finalmente piscava, me despedia daqueles olhos em silêncio. Silêncio por não saber o que falar, silêncio por pensar que a maré poderia parar.
Silêncio por ter medo. 
E, por ter medo, recosto o porta-retratos, até o nosso próximo encontro - quem saberia dizer quando?
Fecho os olhos. Respiro fundo. Na minha confusão, sei que entendo o que aconteceu. Na minha confusão, me silencio, me tormento, me acalmo e me delicio.
Amanhã será um belo dia.